Brasília 17 de janeiro de 2025
Ela não sabia quando começou, porque parecia que sempre esteve lá: a repulsa por si mesma, a sensação de viver num exame invisível do qual dependia tudo. A infância não fora trágica, mas estava longe de ter sido leve. O ponto nem era o passado, e sim o fato de que, desde que tinha memória, enxergava-se como algo defeituoso. Qualquer deslize era vivido como crime que exigia perfeição absoluta para que a punição dela mesma não viesse.
Na adolescência, era elogiada por professores, colegas, chefes, pastores: inteligente, bonita, esforçada. Todos percebiam e aprovavam a disciplina impiedosa com que se cobrava. Havia até um orgulho envergonhado por conseguir se chicotear antes que alguém apontasse qualquer falha.
Quando virou mãe, tudo se intensificou. Amava o bebê do único jeito que sabia: como quem atravessa um campo minado. Cada traço infantil, como sujeira, teimosia, egoísmo ou birra, funcionava como um espelho torto de seu fracasso. A recusa vinha instintiva, mas era esmagada por outra ordem interna: mães perfeitas não rejeitam. Então se obrigava a ser amorosa com fervor quase histérico; quanto mais imperfeita a criança, mais santa precisava parecer.
Por fora era irrepreensível: paciente, carinhosa, dedicada. Por dentro, cada mínimo rompante de impaciência virava desmoronamento moral. A criança cresceu achando-se má e indigna, mas milagrosamente amada por alguém impossível de merecer.
Com o tempo, o filho passou a expressar o que ela escondia. Mentia, roubava, torturava bichos, e cada atrocidade era recebida com perdão silencioso e culpa assumida. Ela convertia os pecados dele em combustível para o próprio ódio. E ele, como todo filho que tenta amar do único jeito que consegue, devolvia à mãe aquilo que ela não podia admitir.
No fim, afundavam na mesma lama: ela, presa ao perfeccionismo; ele, atuando como espelho quebrado onde podia se culpar sem dizer nada.